Monte dos Vendavais – II
— E é logo pela boquilha que queres que eu comece… És tramado, Fokas. Mas eu conto, porque to prometi.
— Eu, como já deves saber, até porque afirmas que conhecias o paizinho, vivi uma vida de marinheiro. Cada porto, cada nova paixão, sabendo sempre que ao levantar das amarras deixaria ali mais um coração despedaçado com a minha partida. Mas nunca me importei, sabia bem ser idolatrada daquela maneira, além do que a protecção incondicional dos marinheiros que me acompanharam a vida inteira estava garantida. Até que um dia, há mais ou menos dois anos, as coisas mudaram.
— Porquê, foi ele que te deixou e soubeste o que era amargar um abandono?
— Não, Fokas, foi a primeira vez e a última que me entreguei realmente, com consequências esmagadoras para mim. Conheci-o no bar de um hotel, em Cádiz, uma vez que lá aportámos. Era mesmo a minha cara. O que me atraiu mais foi ele ser meio italiano, como eu. Uma questão de empatia imediata. Quando dei por mim, o quarto em que estava não era o meu e tive a noite mais incrível da minha vida.
— Mas se foi só uma noite porquê essa história toda? Pelos vistos era o costume, não? Seduzires um tipo para o abandonares na manhã seguinte…
— Não, Fokas, aí é que está. Pela primeira vez, pedi ao paizinho para me dar umas férias do navio, deixando-me ficar em Cádiz. Depois logo voltaria para Lisboa. A primeira semana que lá fiquei foi maravilhosa, nunca me tinha sentido tão presa a alguém. Depois ele começou a receber telefonemas e a ter que sair de repente, deixando-me sozinha muitas vezes. Mas voltava sempre, até ao dia da boquilha. Ofereceu-ma durante o jantar, uma boquilha lindíssima que nunca mais deixei até ao dia em que jantei contigo. Naquela noite esmerou-se, apenas para me deixar sozinha na cama e nunca mais voltar. Por coincidência, houve nesse dia um atentado bombista em Espanha e eu tive quase a certeza de reconhecer a roupa dele num dos feridos. Como nunca soube mais dele que o nome próprio, nem nunca me lembrei de perguntar, nunca tive certezas de nada, e voltei para o navio, donde nunca mais saí em porto nenhum a não ser para o estritamente necessário até o paizinho morrer.
— Bem, miúda, isso é que é ter azar. Mas olha, se calhar foi castigo, por teres feito o mesmo a tantos outros.
— Cala-te, Fokas, não achas que já sofri o suficiente? Acelera e vamos mas é procurar a Elora.
O resto da viagem passei-o a dormitar. Voltar a falar naquilo tinha-me cansado. Despertei quando o Fokas me deu um leve abanão, já à porta do Monte, onde reinava a confusão.
Monte dos Vendavais – I
Arrependi-me da cena no momento em que saí a porta do tasco. Aquele Fokas afectava-me mesmo, raios. A mim, que tinha decidido eliminar os homens da minha vida de uma vez por todas. Maldito Sítio, maldito vento que ao bater-me no rosto me espevitou a consciência e, simutaneamente, os sentimentos que vinha a tentar esconder. Infelizmente, o meu mau génio tinha estragado tudo mais uma vez e, para resolver a situação, teria que passar pela humilhação de lhe pedir desculpa. Tinha que arranjar forma de não ter que o dizer por palavras.
Dei a volta e pespeguei o pópó à porta do tasco, em sentido contrário para o lugar do condutor ficar mesmo a jeito. Esgueirei-me como pude para o assento do passageiro, abri a porta e estendi as chaves com a mão assim que o vi assomar à ombreira. Homem nenhum ia resistir àquilo.
O Fokas inclinou-se, espreitou e desatou às gargalhadas.
— És tramada, tu. Primeiro, fazes cenas, e depois tentas subornar-me com um carrito? Vai ser preciso muito mais que isso, Philbin.
— Vá lá, Fokas, estive a beber, e temos mesmo que ir ter com a Elora. Eu cumpro o prometido e ficamos juntos no hotel, na Ericeira.
— Ah, olha para ela tão mansinha agora. Ericeira? Vens tarde, a Elora está muito mais longe. E só vou aproveitar a oferta porque se faz tarde e não é todos os dias que se conduz um bicho destes e também na condição de me contares a história da boquilha. E sem mentiras, estás a ouvir? Se sonho que estás a mentir, paro o carro, sais e ficas onde ficares.
Quando dei por ela, já estávamos a descer do Sítio, eu ainda demasiado invadida pela raiva por mim própria para poder dizer alguma coisa que não fosse pedir ao Fokas para ter cuidado com o carro do paizinho.
— Pois, disfarça! Pensas que sou o quê? Ou quem? Conheci muito bem o teu pai, minha menina. E agora começa a abrir a boquinha, porque a história deve ser comprida e eu quero saber tudo quando chegarmos à Vidigueira. Vá lá, confessa, de onde é que veio a boquilha?
(continua)
Endechas a Bárbara Cativa
Caro Fokas:
Não tenho forma de saber se esta mensagem te chegará. Encontrei este telemóvel atrás do autoclismo, mas há pouca rede e tem pouco saldo. O teu é o único número que sei de cor e está desligado.
Não sei onde estou, embora sinta frequentemente o cheiro a coentros e a comida se encontre infestada deles. Não sei quanto tempo passou desde que fui sequestrada.
Os coentros devem servir para disfarçar o sabor das drogas que colocam na minha comida. Ando num estado de perpétua ressaca, como se bebesse diariamente maus whiskeys.
Não sei o que tenho feito, a realidade mistura-se com os sonhos num contínuo pesadelo, do qual nunca acordo. As caras e as vozes fundem-se e já não consigo distinguir amigos de inimigos.
Vejo frequentemente a minha cara com uma voz diferente, como se se tratasse de um espelho com mau playback. Oiço também a minha voz a cantar, desafinada como sempre, músicas variadas.
Tão depressa canto Vitorino ou Zeca Afonso, como me oiço cantar velhas músicas de Frank Sinatra e, num caso concreto em que me sentia mais lúcida, Jacques Brell.
O meu carcereiro é um tipo alto e musculado de cabelo branco e desgrenhado, com piercings nos lábios e uma gargalhada cruel, mas percebo que não é ele quem manda. Não sei quem é.
Oiço com frequência as vozes do Rui Tigerpaw e do Portugal Decosta, mas não sei se estão envolvidos ou se estão presos como eu. E depois há uma voz de mulher, aguda e perfurante, que percorre os meus dias com ordens em frases curtas: come, veste isto, canta.
Sinto-me a desesperar. O único alento que me resta está na sensação de ver, por vezes, entre a confusão das caras que me observam, a face enevoada do Imso, ao som desafinado de um Milord da Piaff.
Encontra-me Fokas. Não sei a quem pertence este TM, mas encontro os seguintes nomes na memória Afrodite, Freddix, K., Marga, Margarita e Rui.